De Itamar a Fernando Henrique

01/08/2014 09:09

1.      O desconhecido Itamar Franco

 

Mesmo tendo sido prefeito de Juiz de Fora e senador pelo PMDB, o mineiro Itamar não desfrutava de ampla popularidade. Rompido com o partido, decidiu embarcar no projeto de "renovação nacional" de Collor. Apesar
de vice-presidente, o fato de nunca ter tido muito destaque no governo dificultou a vinculação de sua imagem a qualquer conivência com a corrupção anteriormente praticada.

Ao assumir o cargo sem base partidária definida, Itamar foi alvo de críticas durante a maior parte do seu
governo. O entra e sai de ministros e suas atrapalhadas declarações eram prato cheio para piadas. Durante o seu mandato, foram trocados 61 ministros. Da Fazenda, foram seis e da Agricultura, cinco.

Num quadro inflacionário preocupante, o presidente demonstrava simplicidade, ao contrário da arrogância
de Collor. Essa simplicidade não era suficiente para atenuar os seus rompantes. Quando a "política seletiva de desenvolvimento" começou a dar resultados, ele afastou o autor da mesma, o ministro da Fazenda, Paulo Haddad.

O passado nacionalista de Itamar levou-o a retardar o processo de privatizações inaugurado por Collor.
Escolheu Roberto Freire (PPS) para ser o seu líder na Câmara e Pedro Simon (PMDB), no Senado.

Alguns críticos queixavam-se da inércia do governo. O gelo foi quebrado com a abertura da CPI do Orçamento.
Em 1992, apesar o ministro da Saúde, Adib Jatene, já ter alertado para a relação entre as empreiteiras e o orçamento do Estado, nenhuma providência, até então, havia sido tomada.

A CPI foi aberta depois que o funcionário do Congresso José Carlos Alves, que matara a própria mulher,
também uma funcionária do Congresso, numa queima de arquivo, resolveu contar sobre seus negócios com deputados corruptos. Um grupo de deputados do PPR, PMDB, PFL e PTB (anões do Orçamento),
controlava há anos a mais importante comissão do Congresso, que definia as aplicações, anualmente, dos recursos da União. O exemplo mais cínico foi o do deputado baiano João Alves. Segundo ele, a sua fortuna era proveniente da ajuda de Deus, já que ele havia ganho várias vezes na Loteria Esportiva.

Presidida pelo senador Jarbas Passarinho (PRR) e tendo como relator o deputado Roberto Magalhães (PFL), a CPI denunciou dezesseis parlamentares como participantes das negociatas. Eles recebiam propinas de empreiteiras para fazer emendas ao Orçamento, alocando recursos para obras que seriam feitas por
elas próprias. Ibsen Pinheiro (PMDB), o presidente da Câmara em exercício durante o impeachment de Collor, teve o seu mandato cassado, dentre outros deputados. Estranho foi o caso do deputado pernambucano Ricardo Fiúza (PFL). Além de ter sido acusado de enriquecimento ilícito e ter recebido um jet-ski de
"presente" da Construtora Odebrecht, não teve o mesmo fim do "colega", a cassação.

Em meio aos velhos problemas brasileiros, ocorria no Rio de Janeiro a Eco-92, Conferência da ONU para o Meio Ambiente e Desenvolvimento. Assuntos como: biodiversidade, efeito estufa, lixo tóxico, tecnologias limpas, recursos hídricos e coberturas florestais tomavam conta dos debates. Em novembro de 1992, a imprensa chocava a população brasileira ao noticiar a queda do helicóptero que vitimou Ulisses Guimarães, o ex-ministro Severo Gomes e suas respectivas esposas.

O crescimento da popularidade de Itamar veio com a adoção de um novo plano econômico: o Plano Real. Uma nova moeda foi criada, o Real, reduzindo significativamente a inflação. Fernando Henrique, então ministro da Fazenda, foi o articulador do Plano. Lançado em 1994, o Plano Real derrubou as pretensões de Lula, candidato favorito nas pesquisas para as eleições presidenciais. Inspirado nos modelos mexicano e argentino, o Plano
Real teve como símbolo e instrumento principal a nova moeda, forte como o dólar e precedida pela URV (Unidade Real de Valor), que conviveu com os preços em cruzeiros durante três meses. Com os empresários, o governo fez um pacto: o congelamento dos salários pela não remarcação dos preços. Diminuindo a
especulação, os bancos começaram a ser afetados. Em relação à inflação, o IGP (Índice Geral de Preços) não registrou aumento superior a 3% em julho, 4% em agosto e novamente 3% em setembro.

A idéia de derrota da inflação criava a esperança de um Brasil grandioso e com mais igualdade social.
Favorecendo este otimismo, até o futebol voltava a obter vitória, a seleção foi tetra nos EUA.

Foi nessa conjuntura que ocorreu a campanha da sucessão presidencial e estadual e a renovação de toda a Câmara dos Deputados e de 2/3 do Senado, na maior eleição conjunta da nossa história. Quase 94 milhões de
brasileiros estavam habilitados a votar.

Campanha eleitoral e
Fernando Henrique Cardoso (1994 - 1998)


Fernando Henrique era o candidato do PSDB e recebia apoio de uma aliança de liberais-conservadores do PFL e PTB. A oposição de esquerda era representada pela Frente Brasil Popular - aliança entre o PT, PSB, PPS, PC do B, PV e PCB - tendo LULA como candidato.

Concorreram, também, outros candidatos com menores chances de vencer, como: Orestes Quércia (PMDB), Brizola (PDT), Esperidião Amin (PPR) e do desconhecido Enéas (PRONA).

As propostas de FHC constavam no seu "Mãos à obra Brasil". Na essência, o seu projeto era baseado em refazer o esquema de financiamento do desenvolvimento; na criação de empregos e distribuição de renda; em reformar o aparelho de Estado para a viabilização e realização de projetos sociais compensatórios e para a defesa dos interesses nacionais em plano internacional.

A base de argumentação em defesa das propostas do candidato FHC era a entrada do Brasil no mundo
globalizado. O modelo nacional-desenvolvimentista, sustentado entre 1930 e final da década de 1960, já não cabia mais. Além disso, era necessário corrigir as distorções criadas por esse modelo e agravadas durante o regime militar. O governo precisaria combater a inflação, a concentração de renda e retirar o Brasil da constante ciranda financeira. O Plano Real tinha sido o primeiro passo. A partir da estabilização da economia e da recriação de condições favoráveis à retomada dos investimentos, um novo modelo de desenvolvimento se
consolidaria.

Para que o modelo proposto se firmasse, eram necessárias algumas mudanças. Caminhava-se para a idéia do
Estado mínimo. Para tanto, não bastava a abertura ao capital estrangeiro. Outras medidas tinham que ser efetivadas, como: a reforma do Estado (deixando de ser produtor e "protetor" para ser administrador e regulador da economia); a modernização das indústrias a partir da "flexibilização dos monopólios estatais"; uma política de investimentos em educação, ciência, agricultura e saúde; a reforma fiscal e a retomada dos investimentos em infra-estrutura.

O projeto de governo de Lula era baseado na "revolução democrática". Para Lula, a crise não era resultado
apenas do modelo de desenvolvimento: "diferentemente de muitos países - inclusive da América Latina - a unidade da Nação e a construção do Estado Nacional Brasileiro não foram acompanhadas de um processo de universalização da cidadania. (...) O Brasil realizou todas suas grandes transições políticas e sociais através de processos conservadores de conciliação das elites, que uniram seus interesses para impedir a presença dos de baixo na consecução das transformações necessárias". (Programa de Governo, Cadernos de Teoria &
Debate, SP. 1994, in História da Sociedade Brasileira , ed. Ao Livro Técnico).

A privatização do Estado era questionada. A Frente Brasil Popular pregava a radicalização da democracia,
propondo intensa participação, no governo, de trabalhadores da cidade e do campo, de intelectuais, profissionais e técnicos, além de pequenos e médios empresários.

Ao contrário do neoliberalismo, a Frente defendia a forte participação do Estado no sistema produtivo e de serviços e, ainda, o estímulo ao cooperativismo. Condenava os imensos lucros de empresas transnacionais e objetivava a retomada do crescimento econômico pela via de um modelo baseado no mercado interno de
massas.

O êxito do Plano Real e a imagem de um candidato intelectualmente preparado deram a vitória, já no
primeiro turno, a Fernando Henrique Cardoso. Não bastando esses dois fatores positivos para a sua candidatura, FHC ainda recebeu apoio irrestrito da imprensa.

Para manter a estabilidade, o governo praticava uma política de contenção de gastos, redução de créditos e
manutenção de juros altos. Essa política diminuía a capacidade de consumo e gerava dificuldades para a indústria e o comércio. A abertura do mercado interno às importações causaram problemas para as empresas nacionais. As mesmas tinham dificuldades em competir e o resultado foi uma queda substancial das
transações comerciais com o exterior. No primeiro quadrimestre de 1997, o déficit nas exportações alcançava 4 bilhões de dólares.

Em termos políticos, FHC demonstrou imensa capacidade em ampliar sua base parlamentar no Congresso
conseguindo a aprovação das propostas de emendas constitucionais. As modificações aprovadas permitiram, por exemplo, a quebra dos monopólios do petróleo e das telecomunicações e a alteração do conceito de empresa nacional, facilitando a entrada de capital estrangeiro.

Outras reformas foram discutidas no Congresso. FHC, em entrevista à revista Veja de 9 de abril de 1997, mostrou-se preocupado com a relutância do Legislativo em votar algumas reformas que, para o presidente, eram de fundamental relevância para a estabilidade econômica, a modernização da administração pública, o enxugamento da máquina estatal com redução dos gastos públicos.

O governo de FHC não conseguiu, entretanto, realizar as reformas tributária, administrativa e previdenciária. A primeira tinha como objetivos a redução significativa do número de impostos, o aumento do número de contribuintes e a redução dos tributos sobre as exportações, sobre a produção e os bens de consumo básicos. A segunda buscava a extinção da estabilidade do emprego para funcionários públicos e o estabelecimento de um teto salarial máximo. Nesse sentido, a Câmara Federal chegou a aprovar, em abril de 1997, o fim da estabilidade dos funcionários públicos em troca da aprovação de um teto salarial absurdamente alto
de R$ 21.600,00. Como a opinião pública e as oposições reagiram a esse acordo vergonhoso, o governo propôs um teto equivalente à remuneração de um ministro do Supremo Tribunal Federal. Em nova votação, o governo não conseguiu a aprovação de sua proposta. A terceira reforma, a previdenciária, reduziu-se a
algumas modificações: o projeto em andamento, em abril de 1997, previa que a idade mínima para a aposentadoria dos trabalhadores civis seria de 55 anos para o homem e 50 para a mulher. Só médicos, parlamentares e professores poderiam acumular aposentadorias, além de estabelecer que aposentadoria especial era um direito exclusivo para parlamentares e professores da pré-escola e dos ensinos fundamental e médio.

Em relação à reforma administrativa, vale ressaltar que a perda da estabilidade para o funcionalismo público seria uma prova inconteste do desmantelamento de um sistema administrativo que tem como função precípua a prestação de trabalho para o Estado, sem interferências ou pressões políticas. Portanto, tendo por base o
comportamento de uma fatia considerável de políticos brasileiros que, após ganharem uma eleição, loteiam cargos para os seus correligionários como se estivessem administrando os seus próprios negócios, os cargos públicos terminariam se transformando numa extensão dos seus gabinetes.

Outra reforma foi discutida no Congresso: o projeto da reeleição. Este, após toda a polêmica gerada em
torno da sua negociação, foi aprovado em 1997.

Enquanto o movimento sindical parecia hibernar, talvez em razão do desemprego e da falta de perspectivas de melhorias, fortalecia-se um movimento social que ocupava as principais manchetes da imprensa nacional: o movimento dos sem terra. O MST demonstrava audácia e gerava preocupação para o governo e para os latifundiários. Vários confrontos envolveram sem terras e forças policiais. Os mais violentos ocorreram em Corumbiara (RO), em 1995, e em Eldorado dos Carajás (PA), em abril de 1996. Neste último, 19 sem-terra foram massacrados por policiais do Estado. A repercussão dos conflitos ultrapassaram as fronteiras brasileiras e foram motivo de indignação internacional.

Dentro de um contexto globalizante e de formação de blocos econômicos, em 1º de janeiro de 1995, entrou em vigor o Mercosul. Países do Cone Sul (Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai) passavam a formar uma zona de integração econômica. As principais metas eram: a comercialização de mercadorias sem impostos de importação a partir de 2001 e a aplicação de uma tarifa aduaneira conjunta aos produtos importados de outros países que não fazem parte do pacto.

Fernando Henrique Cardoso
(1998 - 2001)


Beneficiado com a aprovação da emenda da reeleição e prometendo a retomada do crescimento econômico, FHC reelegeu-se em 1998. Mais uma vez, Lula saía derrotado de uma eleição presidencial. A reeleição não escondeu o desgaste do governo FHC. O Brasil apresentava a menor taxa de crescimento e a maior taxa de desemprego da história do país.

O programa de privatizações, ao contrário do que previa o governo, não reduziu o déficit público. Entre 1994
e 1999, a dívida interna pública saltou de 108 para 328 bilhões de reais, representando, no final do primeiro mandato 39% do PIB brasileiro. Apesar das advertências da oposição, destacando-se a figura do deputado federal Aloizio Mercadante (PT), o real manteve-se artificialmente elevado e sua defesa contra ataques
especulativos exauriu nossas reservas. Só após as eleições é que o governo desvalorizou a moeda, tornando competitivas as exportações brasileiras.

O processo de privatizações e de mudanças na estrutura das estatais continuava. Em 24 de março de 1999, chegava a vez da Petrobrás. Ao nomear Philippe Reichstul para presidência da companhia, FHC tinha o objetivo de tornar a Petrobrás mais competitiva e menos contrária à quebra do monopólio da extração
do petróleo. Ela teria que encolher, colocar ativos à venda e rever concessões, podendo até deixar de sustentar o seu fundo de pensão. Segundo Rodolfo Tourinho, ministro das Minas e energia e novo presidente do conselho de administração da empresa, a intenção era que o refino e o transporte fossem mais abertos à competição.

"Fernando Henrique nega veementemente que pretenda privatizar a estatal, mas algumas de suas subsidiárias devem ser vendidas para a iniciativa privada, o que se enquadra na cartilha do Fundo Monetário Internacional (FMI). Para viabilizar isso, o novo estatuto estabelece também que não é mais vetada a estrangeiros a compra de ações ordinárias, o que permite a venda de 34% do capital votante que excede ao limite mínimo necessário à manutenção hoje do controle pela União". (Istoé - nº 1539 - 31 de março de 1999).

A negação de FHC em relação à privatização da Petrobrás não se sustentava. Só o custo para mudar o logo da empresa para Petrobrax foi de R$ 70 milhões. A venda não se concretizou por conta da pressão popular e a
luta da oposição.

Em 1999, ocorreu a CPI dos Bancos. É verdade que essa CPI surgiu de uma disputa entre PMDB e PFL (DEM): o PFL - naquele momento, em atritos com FHC - e o PMDB querendo se fortalecer junto ao governo. O resultado foi a exposição da ligação entre Francisco Lopes, presidente do Banco Central, o banqueiro Salvatore Cacciola (banco Marka), a Macrométrica e o banco Fonte Cindam. Essa ligação consistia no repasse de
informações privilegiadas e tráfico de influência envolvendo o governo. Esses bancos compraram dólares pelo preço anterior à valorização, vendendo-os posteriormente.

"O que se descobriu até agora pode ser a ponta do iceberg de um enorme esquema de vazamento de informações privilegiadas e corrupção, envolvendo figuras que ocupam ou ocuparam cargos chave no governo FHC. "Existe uma máquina de tráfico de influências no governo. Essa máquina se revela não apenas nas
evidências de que Chico Lopes ajudou os bancos Marka e FonteCindam. Há indícios de um esquema envolvendo, em algumas privatizações, o ex-ministro Mendonça de Barros, André Lara Resende, ex-presidente do BNDES, Ricardo Sérgio, do Banco do Brasil, e João Bosco, da Previ", afirma o deputado federal Ricardo
Berzoini (PT-SP)" (www.correiocidadania.com.br/antigo/ed140/politica.htm).

No último ano do governo FHC, um dos temas mais comentados pela sociedade brasileira era a ética na
política. Acontecimentos nefastos, como corrupção e CPIs contra políticos corruptos e até um caso de deputado assassino (Hildebrando Pascoal) motivavam a descrença popular em relação aos representantes do povo. Os senadores José Roberto Arruda (líder do governo FHC) e Antônio Carlos Magalhães (então presidente do Senado), que comandaram a fraude do painel eletrônico do Senado na votação que cassou o mandato do senador Luiz Estevão (PMDB-DF), terminaram renunciando para não perderem direitos políticos.

Foi nesse clima de busca de ética na política, combate à fome, criação de empregos e investimentos no social
que começava a ganhar corpo a campanha de Luiz Inácio Lula da Silva.

Durante a campanha eleitoral, o PFL chegou a vislumbrar a possibilidade de vencer as eleições. Roseana Sarney crescia nas pesquisas de intenção de votos. A sua presença despertou a busca da valorização da figura feminina. Era uma estratégia do marketing político. A pretensão do PFL não durou muito. A descoberta de uma
elevada quantia sem uma origem definida, que seria utilizada na campanha, destruiu a sua candidatura.

Lula - tendo como principais concorrentes Garotinho, Ciro Gomes e José Serra - chegou ao segundo turno com
este último. Mesmo sendo José Serra o candidato do governo, a vitória de Lula foi grandiosa. A sua estratégia de campanha baseou-se na eliminação de sua imagem de radical esquerdista. Contra todo um discurso aterrorizador de uma possível disparada do dólar, caso Lula ganhasse as eleições, o candidato metalúrgico demonstrou maturidade e capacidade política para enfrentar os debates eleitorais.

Com uma grande mobilização popular, o Partido dos Trabalhadores comemorava uma luta de 22 anos. Pela
primeira vez na História do Brasil, subia ao poder máximo da República um partido originado nas bases populares. Segundo o próprio presidente eleito, a "esperança venceu o medo".